Ao longo dos séculos, o que era tratado como comida e visto como uma, dentre as
demais necessidades básicas das pessoas, passa a ser considerado como alimento, ou seja, torna-se objeto de
estudos da ciência culinária. Mais
importante, sob o viés da culinária, a comida, além de alimento, torna-se respeitada
não só como ciência, mas também como arte. A gastronomia, por fim, incluiria
saberes, cotidianos e científicos, assim como os fazeres associados às
expressões da cultura local ou sistematizados em “cardápios internacionais”,
passando a ser um objeto histórico, que agrega valores materiais e simbólicos,
decodificados de maneira pessoal, por cada um dos sujeitos partícipes do
processo que vai da produção dos insumos, ao consumidor final.
No percurso de construção de sentido pontua-se que,
se nas culturas pré-modernas a comida esteve associada ao suprir as necessidades
básicas dos seres humanos, imbuída de tal importância ela também integrava rituais,
com o mais alto sentido religioso. Na Bíblia católica, tanto no Velho como no
Novo Testamento, vários episódios estão associados ao alimento. Não foi
diferente em outras religiões. Na Modernidade, em especial em paralelo a
constituição dos Estados Nacionais, o alimento e o comer passam a estarem associados
aos signos do lugar, levando a que as comidas sejam rotuladas como “típicas”,
ao demarcar diferentes nacionalidades.
Em termos de valor simbólico, e já rotulada
como gastronomia, na segunda metade
do século XX a comida se vê reconhecida entre as expressões culturais mais
significativas, espaço que é consolidado nas primeiras décadas do século XXI,
tanto em centros urbanos como em áreas rurais. Tal ênfase incentiva a presença
de diferentes movimentos gastronômicos, alguns associados aos novos
conhecimentos sobre a alimentação, outros mais próximos de princípios
religiosos e filosóficos, tornando familiares expressões como slow food, fast
food e outros rótulos e
segmentações, como cozinha étnica (germânica, italiana, brasileira....), regional
(baiana, gaúcha, capixaba, mineira...), natural, ecológica, macrobiótica, fusion, dentre outras.
A proposta deste Projeto de Pesquisa é, justamente,
a de resgatar esse percurso de sentido na região turística da Serra Gaúcha, olhado
a partir das teorias sobre a Pós-modernidade - entendida como o equivalente
cultural na sociedade sob a economia capitalista globalizada -, e recorrendo em
especial ao teórico Fredric Jameson. Como
marxista, o primado da análise de Jameson é o econômico, mas não mais nas
chaves propostas por Marx, nas quais a infraestrutura condicionaria, em relação
direta, a superestrutura, mas na relação dialética entre o econômico e o
cultural, na qual o econômico avançaria sobre o cultural e o cultural sobre o
econômico, num espaço de tensão que tem a publicidade/propaganda como principal
mediação, mas funcionando também para além dela.
Aplicando
à gastronomia, esta teoria permite sustentá-la não apenas no seu viés cultural,
mas também no econômico, como posto nos discursos do Ministério da Cultura
brasileiro, quando da recente inclusão da economia
criativa, entre suas políticas e área de ação. Para melhor
entender a inclusão, convém reportar ao Plano
da Secretaria da Economia Criativa, do Ministério da Cultura (2011), quando
o mesmo afirma que, no momento contemporâneo, “os setores criativos são todos
aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo
gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que
resulta em produção de riqueza cultural e econômica” (p.22).
Aprofundando, significaria dizer que falar em economia criativa
implica considerar igualmente os dois termos da expressão, ambos com igual
peso: o criativo, antes associado a um cultural diletante, e o econômico, com
as implicações de planejamento e gestão, entre outros. Se transposto para a
gastronomia, a pós-modernidade consagra o que era da esfera do biológico e do
privado em tempos mais remotos, como uma produção e consumo eivados de
imaginários públicos e publicizados, com alta interface com o turismo, mas não
só, justiçando a importância em realizar estudos acadêmicos sobre a mesma.
Considere-se, ainda, sua alta importância na composição do produto turístico
Serra Gaúcha, reforça-se a necessidade de pesquisas que envolvam história,
imaginários e sua recepção pelos turistas.
Na região turística da Serra Gaúcha,
os destinos e os roteiros turísticos, com destaque aos enogastronômicos, têm se
beneficiado do cenário sociocultural contemporâneo, que em termos gastronômicos
procuram aliar o prazer da degustação sem pressa de pratos regionais, à
possibilidade de sua harmonização com vinhos produzidos no local. Ou seja,
incentivam a recuperação das raízes históricas das cozinhas ao valorizar
técnicas de preparo e a utilização de ingredientes locais, incrementando os
prazeres ligados ao terroir. Esses
fatores ativam o turismo na região, pois são importantes motivadores de viagens.
A região enoturística do Vale dos
Vinhedos[1] em
muito contribuiu para que uma das cidades que o abriga, Bento Gonçalves, fosse
incluída pelo Ministério do Turismo como um dos destinos prioritários do
turismo brasileiro e, nesta condição, recebesse tratamento privilegiado pela
autoridade federal. O Vale dos Vinhedos se constituiu a partir da herança
colonial, marcada ali pela presença de imigrantes da Itália, vindos para a
região nas décadas finais do século XIX. Os italianos trouxeram consigo a
tradição da mesa farta e da produção de vinhos. Essa herança se hibridizou na
região, a partir da convivência com outras vertentes migratórias, mas também
porque as receitas trazidas pelos migrantes precisaram adaptar-se aos
ingredientes e temperos encontrados no novo território. Esses processos
culturais, por um lado, tornam as expressões locais ricas e diversificadas;
mas, por outro lado podem induzir uma leitura difusa dos modos de ser, em
especial os impressos na gastronomia.
Tais
enfoques justificam, portanto, avançar na pesquisa aqui proposta e utilizar a teoria de Bourdieu, propondo supor
a presença de um campo gastronômico,
na sua produção (histórica e econômica) alimentando imaginários, e sua
reprodução, condicionando habitus e,
nesses termos, a recepção, como objeto de estudo, tendo por foco a região
turística da Serra Gaúcha.
[1] O Vale dos Vinhedos abarca os
municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, todos no Rio
Grande do Sul.