segunda-feira, 1 de outubro de 2012

NOSSA PROPOSTA


Ao longo dos séculos, o que era tratado como comida e visto como uma, dentre as demais necessidades básicas das pessoas, passa a ser considerado como alimento, ou seja, torna-se objeto de estudos da ciência culinária. Mais importante, sob o viés da culinária, a comida, além de alimento, torna-se respeitada não só como ciência, mas também como arte. A gastronomia, por fim, incluiria saberes, cotidianos e científicos, assim como os fazeres associados às expressões da cultura local ou sistematizados em “cardápios internacionais”, passando a ser um objeto histórico, que agrega valores materiais e simbólicos, decodificados de maneira pessoal, por cada um dos sujeitos partícipes do processo que vai da produção dos insumos, ao consumidor final.
No percurso de construção de sentido pontua-se que, se nas culturas pré-modernas a comida esteve associada ao suprir as necessidades básicas dos seres humanos, imbuída de tal importância ela também integrava rituais, com o mais alto sentido religioso. Na Bíblia católica, tanto no Velho como no Novo Testamento, vários episódios estão associados ao alimento. Não foi diferente em outras religiões. Na Modernidade, em especial em paralelo a constituição dos Estados Nacionais, o alimento e o comer passam a estarem associados aos signos do lugar, levando a que as comidas sejam rotuladas como “típicas”, ao demarcar diferentes nacionalidades.
Em termos de valor simbólico, e já rotulada como gastronomia, na segunda metade do século XX a comida se vê reconhecida entre as expressões culturais mais significativas, espaço que é consolidado nas primeiras décadas do século XXI, tanto em centros urbanos como em áreas rurais. Tal ênfase incentiva a presença de diferentes movimentos gastronômicos, alguns associados aos novos conhecimentos sobre a alimentação, outros mais próximos de princípios religiosos e filosóficos, tornando familiares expressões como slow foodfast food  e outros rótulos e segmentações, como cozinha étnica (germânica, italiana, brasileira....), regional (baiana, gaúcha, capixaba, mineira...), natural, ecológica, macrobiótica, fusion, dentre outras.
A proposta deste Projeto de Pesquisa é, justamente, a de resgatar esse percurso de sentido na região turística da Serra Gaúcha, olhado a partir das teorias sobre a Pós-modernidade - entendida como o equivalente cultural na sociedade sob a economia capitalista globalizada -, e recorrendo em especial ao teórico Fredric Jameson. Como marxista, o primado da análise de Jameson é o econômico, mas não mais nas chaves propostas por Marx, nas quais a infraestrutura condicionaria, em relação direta, a superestrutura, mas na relação dialética entre o econômico e o cultural, na qual o econômico avançaria sobre o cultural e o cultural sobre o econômico, num espaço de tensão que tem a publicidade/propaganda como principal mediação, mas funcionando também para além dela.
Aplicando à gastronomia, esta teoria permite sustentá-la não apenas no seu viés cultural, mas também no econômico, como posto nos discursos do Ministério da Cultura brasileiro, quando da recente inclusão da economia criativa, entre suas políticas e área de ação. Para melhor entender a inclusão, convém reportar ao Plano da Secretaria da Economia Criativa, do Ministério da Cultura (2011), quando o mesmo afirma que, no momento contemporâneo, “os setores criativos são todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica” (p.22).
Aprofundando, significaria dizer que falar em economia criativa implica considerar igualmente os dois termos da expressão, ambos com igual peso: o criativo, antes associado a um cultural diletante, e o econômico, com as implicações de planejamento e gestão, entre outros. Se transposto para a gastronomia, a pós-modernidade consagra o que era da esfera do biológico e do privado em tempos mais remotos, como uma produção e consumo eivados de imaginários públicos e publicizados, com alta interface com o turismo, mas não só, justiçando a importância em realizar estudos acadêmicos sobre a mesma. Considere-se, ainda, sua alta importância na composição do produto turístico Serra Gaúcha, reforça-se a necessidade de pesquisas que envolvam história, imaginários e sua recepção pelos turistas.
Na região turística da Serra Gaúcha, os destinos e os roteiros turísticos, com destaque aos enogastronômicos, têm se beneficiado do cenário sociocultural contemporâneo, que em termos gastronômicos procuram aliar o prazer da degustação sem pressa de pratos regionais, à possibilidade de sua harmonização com vinhos produzidos no local. Ou seja, incentivam a recuperação das raízes históricas das cozinhas ao valorizar técnicas de preparo e a utilização de ingredientes locais, incrementando os prazeres ligados ao terroir. Esses fatores ativam o turismo na região, pois são importantes motivadores de viagens.
A região enoturística do Vale dos Vinhedos[1] em muito contribuiu para que uma das cidades que o abriga, Bento Gonçalves, fosse incluída pelo Ministério do Turismo como um dos destinos prioritários do turismo brasileiro e, nesta condição, recebesse tratamento privilegiado pela autoridade federal. O Vale dos Vinhedos se constituiu a partir da herança colonial, marcada ali pela presença de imigrantes da Itália, vindos para a região nas décadas finais do século XIX. Os italianos trouxeram consigo a tradição da mesa farta e da produção de vinhos. Essa herança se hibridizou na região, a partir da convivência com outras vertentes migratórias, mas também porque as receitas trazidas pelos migrantes precisaram adaptar-se aos ingredientes e temperos encontrados no novo território. Esses processos culturais, por um lado, tornam as expressões locais ricas e diversificadas; mas, por outro lado podem induzir uma leitura difusa dos modos de ser, em especial os impressos na gastronomia.
Tais enfoques justificam, portanto, avançar na pesquisa aqui proposta  e utilizar a teoria de Bourdieu, propondo supor a presença de um campo gastronômico, na sua produção (histórica e econômica) alimentando imaginários, e sua reprodução, condicionando habitus e, nesses termos, a recepção, como objeto de estudo, tendo por foco a região turística da Serra Gaúcha.



[1] O Vale dos Vinhedos abarca os municípios de Bento Gonçalves, Garibaldi e Monte Belo do Sul, todos no Rio Grande do Sul.